quinta-feira, 27 de outubro de 2022

eu vou aí > here by chance | breathless




eu vou aí > here by chance | breathless


eu vou aí.
não esqueci o postal que compraste para mim...
eu vou aí, na realidade estou já a caminho.
e no entanto preciso deste tempo para decidir como devo aparecer... parece estranho, é sempre estranho como tudo em todas as histórias de reencontros.
mudei de casa... mudei de bairro... mudei até de emprego na realidade. despedi-me. e até cortei o cabelo.
ainda não me viste com o cabelo curto, acho que nunca me viste com o cabelo tão curto... se calhar nem me reconheces... ou sequer, quero que me venhas ver... ou talvez até queira... mas não sei se podes ou deves...

abandonei aquele subúrbio decrépito onde me conheceste, saí da periferia. vivo agora num velho bairro consolidado da cidade... povoado de imensas e estreitas vielas... e de uma população idosa... simpática e sempre disponível... e confesso... talvez demasiado curiosa... para a minha exigência de privacidade...
escreve-me outro postal... como o último, o único desde que partiste...
talvez seja a melhor solução... talvez seja mesmo a única solução, para continuar a enganar esta maldita e confusa desesperança...

quando chegar talvez te telefone de um qualquer café perto da estação... nesta viagem imprópria. 
mas não digas nada, tudo é ainda profundo como o silêncio, como o tempo...
ainda hoje associo o sacrifício desta viagem à memória de uma canção que teima e resiste em me acompanhar e, vicia...
já não me lembrava da voz... excepto talvez da melodia doce com o cansaço do tempo... here by chance... breathless...

desculpa... já quase me esquecia... parabéns!...


 

anúncio classificado > tender is the night | bill nelson

 




anúncio classificado > tender is the night | bill nelson


anúncio classificado, publicado num jornal popular de tiragem duvidosa:


o preço da diferença é a solidão.
o preço da solidão é o silêncio.
não oiço the smiths. porque não quero.
no entanto...
como te poderei encontrar se apenas sei que a gabardina é azul...

assinado: amoras e ameixas

o amor silencioso> raein | ólafur arnalds





o amor silencioso> raein | ólafur arnalds

não é vergonha.
é talvez arrependimento. 
o não ter sabido expressar da melhor forma os meus sentimentos. 
da forma mais óbvia. e fácil ainda por cima.
mas não.

pertenço a uma geração de transição.
a dos rapazes que eram ainda educados a não mostrar os seus sentimentos evidentes.
a serem rebeldes com as raparigas e tendencialmente a ignorar a sociedade em si.

ao meu pai apenas lhe vislumbrei um dia uma espécie de lágrima ao chegar a casa após mais um regresso de um internamento hospitalar.
ou o brilho no seu olhar sempre que se referia a nós, os seus filhos, e a qualquer disparate que fosse erigido naquele quarto de que tanto orgulho ele tinha...

como o nick cave referiu recentemente numa entrevista...
sou de uma geração em que os músicos tinham a obrigação moral de ofender as pessoas...

e todos nós, digo-o eu... os descendentes do movimento punk, que em nada veio ajudar a colmatar isso... antes pelo contrário.
a obrigatoriedade da contestação, a rebeldia não mais nos permitiu estar em harmonia e sintonia familiar...
havia uma urgência na discórdia... qualquer assunto servia de eterno confronto e conflito. 
existia já sobretudo um desvínculo propositado... um desligar dos antecessores, uma distância prevista e propositada... desproporcional... mas nada comparável com o que se passa na actualidade.

esse mesmo conflito de gerações agudizou-se por vezes... mas nada mais aproximou.
apenas muito mais tarde... alguns de nós já mesmo depois de terem perdido os familiares... e não, sem nunca lhes ter sido possibilitado expressar a razão que tantas vezes lhes assistia...

foi uma juventude plenamente vivida... onde o futuro contava para nada... a urgência estava toda depositada no presente... 
o próprio movimento isso tinha como mote e nisso insistia e fazia alarde... no future.

agora todos estes anos volvidos... tal como provavelmente o nick cave e tantos outros que até aqui chegaram da minha geração... vivencio o outro lado desta serenidade que gostava de ver instalada... e que não se consegue... porque os conflitos de gerações são eternos e nos possibilitam e permitem avançar e consolidar todas as experiências e ensinamentos que nos foram algures no tempo, transmitidos... e coexistem com o sentimento absurdo de que na juventude as regras existem para ser quebradas.

e isso, definitivamente não é vergonha.
é estrutural.
e não é uma questão de ficar melhor ou simplesmente tudo bem. 
é antes de aceitar.
sobretudo antes que seja tarde demais...







 



estória vulgar > praise (pratah smarami) | david sylvian



estória vulgar > praise (pratah smarami) | david sylvian


conheci-a... assim só, numa noite.
através de uma amiga comum. num bar escuro e atarracado... onde parecia estarmos todos encavalitados... literalmente em cima uns dos outros.
entrou... sentou-se e meteu conversa comigo... era o que estava mais perto da entrada... e estava realmente só.
até aí, não havia gostado nada da saída dessa noite... até porque eu nem sou muito de sair com frequência...
o jantar havia sido um fiasco.
realmente haviam escolhido um restaurante tão caro... e a comida... bem, é melhor nem falar...
e depois todas as pessoas surgiram acompanhadas... apenas eu, não.
traindo essa nossa promessa... de um jantar só, de amigos...
mas, mesmo que quisesse... em última instância não podia... não teria companhia para levar.
há muito que vivia só... e já não estranhava... habituara-me à minha presença e companhia apenas. vivia bem assim.
mas nessa noite, não.

ela pediu uma bebida e estranhou eu estar ali só... na presença de uma garrafa de água gaseificada...
falámos dos nossos empregos...sim, porque eu tenho um emprego... um serviço, como no gozo lhe costumo chamar...
falou-se de música e do conservatório...
foi quando confessou que tinha estudado música... uma licenciatura no conservatório.
e prometeu levar-me a sua casa para me mostrar o violoncelo que havia comprado em paris.

duas horas mais tarde já estava na cama comigo... a partilhar uma estranha e incómoda intimidade...
de que mais tarde, creio... me viria a arrepender...

ficámos assim só... desconhecidos, noite dentro deitados... naquela cama estreita e pequena...
olhando fixamente a sombra dos nossos corpos... no tecto projectada pela luz dos carros que passavam lá fora...
através dessa luz amarelada que coava todo o espaço, falávamos pausadamente... acerca de tudo, acerca de nada.

fixei-me mais no som que de longe chegava... oriundo de uma qualquer casa anexa...
the healing place... david sylvian...
tentando assim acreditar que toda a magia, não passava de uma estratégia barata e usual...
de me ter ali assim...
onde certamente já haviam estado tantos outros. como agora eu.


quarta-feira, 5 de outubro de 2022

do tempo > or so it seems | duet emmo





















do tempo > or so it seems | duet emmo



do tempo em que a música era esquisita... e aceitável.
porque se aceitava. tudo se encaixava e aceitava... se bem que não se consumia...
a experimentação e o experimentalismo...
músicos autodidactas... que tudo queriam mostrar... mesmo por vezes a ausência de bom senso... 

vem isto a propósito da reedição do or so it seems... dos duet emmo.
que também poderiam ser os dome... os wire quem sabe... mas apenas o graham lewis e o bruce gilbert... os dome então... acrescidos do dono da editora... o daniel miller... que apenas havia lançado um único single, debaixo do nome... the normal.
estes duet emmo resumiam tudo o que os dome haviam encarnado... e igualmente trilhavam os íngremes caminhos que todos os elementos dos wire igualmente haviam percorrido... com a excepção a ser feita ao colin newman... que rapidamente se decidiu por uma vertente mais pop e povoada...

subsequente aos registos dos dome... que haviam já efectivamente abandonado o processo criativo tradicional... e deixado o rock para trás... não sendo este registo dos duet emmo enclausurado e hermético... não deixa ao comum ouvinte mais do que uma certa estranhesa e eventual possível tormenta...
esta liberdade estética... composições em modo laboratorial... na senda dos residents... cabaret voltaire... e mesmo as correntes literárias e inspiração industrial... com um eventual piscar de olho à corrente no wave nova iorquina...

nessa época... retornava o auge da experimentação e da electrónica... com inúmeras bandas a ensaiarem rigorosamente tudo... mas mesmo tudo... numa nova antevisão dos gloriosos tempos da bauhaus, da teatralidade e do experimentalismo do the art of noise... manifesto futurista de luigi russolo... que mais tarde foi rastilho e chama para bandas como os cabaret voltaire... throbbing gristle... fad gadget... clockdva... e tantos e todos os outros que se encaixaram e foram anormalmente rotulados de música industrial...

desse tempo... em que a música era aceitavelmente esquisita e estranha... 
e isso era tudo o quanto basta.

segunda-feira, 3 de outubro de 2022

triumph dolomite 1200 > o tempo de outros tempos










triumph dolomite 1200 > o tempo de outros tempos


o carro seguramente já não existe. tão pouco o seu dono.
ficaram perdidos no tempo que entretanto passou... e igualmente retidos na minha memória.
posso falar do triumph dolomite verde escuro... religiosamente parado em frente da casa do seu proprietário, naquela praceta calma e sombria da cidade... mas também do ford anglia cinzento guardado com muito zelo... ou apenas da carrinha peugeot 304 azul escura e discreta.
todos eles fazem inequivocamente parte da minha vida... por tantas e todas as razões.
seja através do senhor lopes... marido da dona ester, professora de piano e mãe do luís e do filipe... do comandante que tanto e todos aturou... e invariavelmente emprestava o seu triumph verde escuro ao rui ou ao joão... ou a carrinha peugeot do meu tio rui... que rapidamente e cruelmente foi deixada para trás em prol de um triumph mga descapotável...
podia falar dessa relíquia que era esse fiat 126... que consistentemente nos levava a qualquer praia madrugada cedo... e que nunca, mas mesmo nunca nos deixou ficar mal... na perseguição e busca das melhores ondas em todos e quaisquer dias do ano...

mas seguramente seria indelicado deixar de fora as carrinhas mazda... uma azul escura e a outra branca... que diariamente nos transportaram até ao 2001... noite a pós noite... e acreditem não é exagero algum. nenhum.
éramos frequentadores assíduos... e quando digo assíduos era mesmo, todas as noites...
era essa efeverscência de música nova... a ânsia da descoberta... que depois invariavelmente nos obrigava selectivamente a comprar os discos mais interessantes que assim íamos descobrindo...
também por aqui por aqui passou a minha consistência e cultura musical. posso afirmar que os alicerces talvez aqui residam. 

a música era outra. porque a condição era outra.
havia uma urgência na descoberta... sobretudo porque nada estava ali assim tão acessível e perto de se chegar. 
o acesso era mesmo muito limitado... a dimensão das edições idem... e o tempo urgia...
e tanto havia por desbravar e descobrir... 
e os acessos eram sempre os mesmos...
ou altas horas da noite... o john peel... bastas vezes indecifrável... 
o antónio sérgio mais próximo, igualmente noite dentro... mas um decalque e fotocópia... especialmente para quem tinha acesso ao radio 1 do john peel...
havia também particular e religiosamente aos sábados das 11 às 13 horas... o aqui rádio silêncio... do jaime fernandes... que nos ia depositando pérolas avulso... que não propriamente novas descobertas ou edições... antes adições consistentes... que igualmente ajudaram a cimentar. uma cultura musical que inconscientemente se ía depositando, e igualmente nos afastava do comum melómano...

e foi com base nestes sedimentos que se fez o caminho... e assim fomos caminhando... tardes passadas no chão de madeira daquele exíguo quarto situado no bairro dos actores... onde nos deliciávamos e hipnotizados ali permanecíamos a repetidamente escutar os discos que nos chegavam de inglaterra... criteriosamente e antecipadamente seleccionados nos poucos catálogos das distribidoras da época... o que nem sempre conferia a chegada segura e o sucesso das prévias compras.

e sobretudo demorava. demorava a chegar.
e essa demora era importante. mesmo muito importante.
porque atribuía significado e importância ao que acabáramos de comprar...
e essa demora atribuía preciosismo aos nossos novos pertences...

hoje tudo mudou... 
menos o ser humano.
continuo a ver esse mesmo brilho no olhar das raparigas e rapazes que "descobrem" os discos surrados e em décima terceira mão... que já antes os pais ouviram... e jazam a preços proibídos nas estantes das lojas de segunda mão... e onde a história e o mofo habitam e coexistem...