mentir > beyond the sun | billy mackenzie
mentir-te-ia se te dissesse que sei mentir.
não, não sei mentir.
talvez lá mais para o fim tente, arrisque, simplesmente insinue.
por ora limito-me a contar-te, a dizer-te aquilo que aprendi... que fui detectando nos outros ao longo da vida. a minha.
saímos sempre a perder... saímos sempre derrotados.
parece-me até uma luz injusta... desproporcionada, porque é tudo uma questão de tempo.
uma mera questão de tempo... até sermos... nos sentirmos derrotados, aniquilados.
resume-se tudo a deixar correr, a deixar passar o tempo. para sermos derrotados.
assim apenas, derrubados...
o tempo tudo anula, tudo esquece... tudo amaina e desenfurece. porque esfria.
agora, assim a esta distância posso já contar-te alguns pequenos episódios, que em tempos não me atrevia sequer a questionar...
posso revelar-te, porque não sendo um segredo... é de um segredo que se trata.
pela intimidade... até mesmo pelo desinteresse para todos... excepto alguns, ou apenas eu.
enterrei os meus pais ao domingo. ambos.
talvez seja mera coincidência, não sei.
ambos me morreram na noite de sexta para sábado... a minha mãe imagino mais tarde, talvez até já na madrugada... sinceramente não sei... não estava presente.
o meu pai isso sim eu sei... provavelmente morreu-me nos braços... ou não.
sei que os seus funerais foram ambos ao domingo pela tarde. no mesmo cemitério.
que me habituei a reconhecer. e a acolher dentro de mim.
sim, eu sei... não vale a pena vires com esse discurso.
sim, eu sei que não está lá nada quando os visito.
reconheço isso.
trata-se apenas de um escape, uma cerimónia assim só atabalhoda e trapalhona.
mesmo.
quando lá vou... sempre que lá vou, tenho uma intenção... que se esvai... e altera.
pretendo levar uma flor branca de que a minha mãe me falava... e nunca consigo, nunca fico feliz com a aquisição.
queria algo simples e singelo, assim de uma beleza gritante... mas nunca encontro... nunca concretizo... e digo a mim mesmo que fica para a próxima... para uma outra visita.
quanto ao meu pai... não sei.
sinceramente não sei.
levo-lhe sempre uma flor, uma memória. uma recordação. de que estou ou estive ali... e simplesmente não esqueci... não o esqueci.
mas em jeito de segredo... sussurro-te, não fico confortável... não sei.
sinceramente não sei. acho que deposito na sua urna uma flor... porque igualmente levo uma à campa da minha mãe.
parece-me mais justo assim... não sei.
não creio que o meu pai o desejasse... porque por flores nunca o vi interessado.
plantas isso sim... mas flores, acho que não.
pode parecer estúpido... mas acho que é algo feminino... mais feminino.
e verdade seja dita, quando percorro o cemitério não gosto de ver campas adornadas... com imagens... fotografias... sufocadas com flores.
prefiro campas simples, sóbrias... por vezes abandonadas até.
gosto de ficar a imaginar... quando entrevejo um jazigo assim entreaberto... abandonado...
detecto os odores... as rendas gastas, rasgadas e sujas... que cobrem os caixões assim ao vento... famílias inteiras esquecidas...
gosto de ver os raios de luz que ali penetram... o peso do tempo... e o pó que invariavelmente levita.
e é assim que também os recordo.
através do percurso do cemitério onde imensas vidas repousam já... e que me devolve à memória todo um tempo gasto no passado...
e essa é a maior crueldade.
obrigar-nos a percorrer as nossas vidas e recordações... mostrando-nos a desmesurada impotência... a nossa frágil e finita dimensão... algo que inevitavelmente apenas se protela... porque não há meios alguns para travar essa inevitabilidade.
a impossibilidade de mudar... sequer de parar, suspender.
porque neste momento... em momentos como este, se possível tudo mudava. tudo alterava.
para antes...